domingo, 23 de janeiro de 2011

" Caía a tarde feito um viaduto

  E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos"

     Com certeza você já ouviu esses versos cantados pela voz de Elis Regina.
"O Bêbado e a Equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, é uma das
mais belas e famosas músicas que falam sobre o conturbado período
da Ditadura Militar(1964 a 1985).
     Nessa época, surgiram os famosos Festivais da Música Brasileira, responsáveis
pelo surgimento de diversos artistas, entre eles: Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Parte das músicas apresentadas traziam uma mensagem de oposição ao governo, mas de forma disfarçada, devido a censura, que não permitia nenhum tipo de crítica social ou política em veículos de comunicação (jornais, rádios, tvs, artes, etc.).

     Leia a letra da música aqui. Depois, faremos citações conforme o andar das explicações.

     Logo no início da música:

" Caía a tarde feito um viaduto " 

     Era no cair da tarde que as sessões de tortura do DOI-CODI
(Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) começavam...
Você deve estar se perguntando... " e o que tem a ver o viaduto?"

     Calma... chegamos nessa parte agora!
Esse trecho refere-se à queda de uma parte do Viaduto Paulo Frontin
(que, claro, era uma obra do governo), no Rio de Janeiro, em 20 de novembro de 1971,
que deixou 48 mortos.

" E Um bêbado trajando luto
  Me lembrou Carlitos "

     Carlitos, também conhecido como "O Vagabundo", é o clássico personagem de Charles Chaplin.
Era um andarilho pobretão que possui todas as maneiras refinadas e a dignidade de um cavalheiro, usando um fraque preto esgarçado, calças e sapatos desgastados e mais largos que o seu número, um chapéu-coco (a famosa cartola), uma bengala de bambu... Ah, não esqueçamos do bigode-de-broxa!!
Já o bêbado e luto fazem uma contradição a alegria do personagem,
e a situação do país na época.

" A lua, tal qual a dona do bordel
   Pedia a cada estrela fria
  Um brilho de aluguel "

     Sabemos que a lua não tem brilho próprio, e é isso que o autor quer dizer.
Ouvimos duas versões sobre esse trecho.
Versão 1: a lua seria a Rede Globo. Foi justamente durante a ditadura que a emissora
se estruturou e ganhou a confiança dos telespectadores que tem hoje.
Versão 2: a lua representa os políticos que se colocaram ao lado do regime militar
em troca de benefícios pessoais.

" E nuvens, lá no mata-borrão do céu,
  Chupavam manchas torturadas, que sufoco! "

     Mata-borrão é um papel que absorve a tinta em excesso das canetas-tinteiro, para evitar borrões.
Essa parte faz uma alusão à Igreja (a Católica, nesse caso), que demorou a tomar uma posição nesse cenário.

" Louco, o bêbado com chapéu-coco
  Fazia irreverências mil pra noite do Brasil "

     Mais uma alusão. Agora apenas a loucura alcoólica poderia fazer alguém ficar passivo na situação do regime.

" Meu Brasil
  Que sonha com a volta do irmão do Henfil
 Com tanta gente que partiu num rabo de foguete "

     Henfil foi Henrique Filho, um cartunista jornalista e escritor. Seu irmão era Herbert José de Souza,
o Betinho. Foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos no país.
Com o golpe militar, em 1964, mobilizou-se contra a ditadura, sem nunca
esquecer as causas sociais, porém. Com o aumento da repressão, foi obrigado a
se exilar no Chile, em 1971. Foi anistiado em 79. Partir num rabo de foguete significa "às pressas",
assim era a forma com que os exilados saíam do país.

" Chora a nossa pátria mãe gentil,
  Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil "

     Maria era esposa de Manuel Fiel Filho, operário metalúrgico morto por tortura durante a ditadura militar. Ele foi preso em 16 de janeiro de 1976 por dois agentes do DOI-CODI/SP, que se diziam funcionários da Prefeitura, sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro.
Em documento confidencial encontrado nos arquivos do antigo DOPS/SP
seu crime seria receber o jornal Voz Operária.
     Já Clarice era esposa de Vladimir Herzog. Vladimir tornou-se famoso
pelas consequências que teve de assumir devido suas conexões com a luta comunista
contra a ditadura militar, autodenominada movimento de resistência contra o regime do Brasil,
e também pela sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro.
Embora a causa oficial do óbito, divulgada pelo governo ditatorial da época,
seja suicídio por enforcamento, há consenso na sociedade brasileira de que ela resultou de tortura.
     As fotos exibidas mostram Vlado enforcado. Elas mostram que se enforcou com um cinto,
coisa que os prisioneiros do DOI-CODI não possuíam.
Além disso, suas pernas estão dobradas e no seu pescoço há duas marcas de
enforcamento, o que mostra que supostamente sua morte foi feita por estrangulamento.
Deste caso e de outros parecidos surge a frase irônica : "suicidados pela ditadura".

" Mas sei que uma dor assim pungente
  Não há de ser inutilmente, a esperança
  Dança na corda bamba de sombrinha
  E em cada passo dessa linha pode se machucar
 Azar, a esperança equilibrista
 Sabe que o show de todo artista
 Tem que continuar "

     A música era usada exaustivamente pelos artistas que não se conformavam com a opressão. A sociedade vivia numa corda bamba, onde quem saísse dela, poderia ter os problemas enfrentados pelos personagens citados na música. Mas todos deveriam continuar na luta contra o fim do regime.

     Abaixo seguem o clip da canção, com Elis Regina, e a gravação do show "Obrigado Gente!"  de João Bosco. O interessante do segundo vídeo é ver o povo cantando, emocionado, a música.

     Sabemos que a música possui uma interpretação diferente para cada pessoa,
por isso seu comentário ajudará e muito a enriquecer o texto... e Até a Próxima!



No início da canção, toca-se um trecho de Smile, de Charles Chaplin.



 
"O vagabundo",
personagem que ficou conhecido
como Carlitos.






Manuel Fiel Filho, o
metalúrgico assassindado por ler
o jornal " Voz Operária".
Vladimir Herzog, o "Vlado".
Betinho, o irmão do Henfil.
Henfil.


2 comentários:

  1. Adorei! Sempre achei que a referência do primeiro verso era sobre o acesso a um viaduto qualquer, o movimento da luz para a noite. Esta interpretação do regime é muito mais real e correta. Fico imaginando a genialidade dos autores para driblar a censura e criar uma obra magnífica como esta. Muito obrigado pelos esclarecimentos.

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  2. Se estudarmos um pouco mais músicas da época conseguimos perceber mais ainda essa genialidade dos nossos músicos, que driblando a censura conseguiam fazer composições maravilhosas. Agradecemos imensamente você por expor suas ideias com a gente :)

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